sábado, 23 de maio de 2009

A ordem das coisas

Os restos que tomam caminho

Margarida é menina boa. Os do edifício, também. Mas entre uns e outros sobram as dessemelhanças que há sempre e que marcam as tragédias

Mariana Marques
especial para O POVO

23 Mai 2009 - 16h02min

Em Limoeiro do Norte, moradores tentaram salvar móveis e objetos pessoais. Abaixo, o abrigo para os atingidos pelas chuvas em Jaguaruana(Foto: FCO FONTENELE )
A ordem é sol, redemoinho de folhas, quentura, mormaço, ventania, areal. Dentro da ordem do sol, do redemoinho de folhas, da quentura, do mormaço, da ventania e do areal, há a ordem do esperar pelo inverno. Margarida esperou com o rosário na mão e simpatia. De um lado, no começo, a ânsia, a reza, os profetas da chuva se encontram e quem traz boas novas do céu que São José finalmente atendeu nossas preces, viu todos os grãos que se planta na beira de casa acolhidos num pano molhado debaixo da pia, em simpatia, cada qual com a sua, porque a mulher é contra, a mulher é do plano da reza. E a filha nem acredita mais em São José porque na igreja do pastor não tem santo. Margarida tão seca, tão acostumada a não ter nada, não ter água, não ter roupa, ficar esturricando junto ao chão dentro de casa, já comeu até sopa de nada quando não choveu e o feijão do quintal não cresceu. Tão magra, o olho grande, tão acostumada, tão sem voz. Margarida agora nem tão seca, a casa cheia de água, o olho grande, continua sem roupa, continua sem voz, continua a comer sopa de nada, a água em abundância, o caminhão carregado de doações e migalhas e alimentos e migalhas e ai que lençol novo e migalhas e uma pasta de dente, alguém grita, e migalhas. Nada do que chega de carro, helicóptero, prefeito ou uma mão amiga cura a revolta silenciosa de Margarida. O padre diz que foi o dedo do homem que confundiu o dedo de deus, e que deus não pode ter mais medida num planeta tão maltratado. Margarida se acha muito mais maltratada do que o planeta, e carrega duas léguas um surrão de 6 coisas que recebeu na distribuição dos desabrigados da praça da igreja. Lençol novo, toalha desbotada mas em muito bom estado, 4 escovas de dente em um pacote azul, 1 quilo de arroz, 1 quilo de açúcar, 1 corte de tecido estampado de algodão.

No conforto do edifício, ninguém conhecia a Margarida, a chefe da família explica aos filhos pequenos a importância da palavra solidariedade. O menino mais novo do edifício, do outro lado do mundo de Margarida desconhecida e sem voz, desenha um diagrama num ofício com a palavra solidariedade. Tão inteligente o menino mais novo que redesenha uma série de questões dentro do diagrama, e desconcerta a mãe, e desconcerta os costumes do edifício, e pergunta demais, e quem pergunta demais tem a voz diminuída no edifício. Quem mandou inventar de colocar este menino para estudar num colégio onde se questiona tudo, Luciana. A rouparia escancarada, um lençol novinho, e olho de Luciana brilhou porque o lençol novinho iria um dia, meu filho, parar na mão de alguém que não tinha nada. E mostra o jornal também chorando ele mesmo, na capa, a letra O se derretendo em lágrimas. O menino mais novo continua construindo as arestas de um diagrama que pensa em separar o lixo, reciclagem dos resíduos, na prevenção do entupimento das bocas de lobo, na preparação das cidades para as chuvas, na criação de barragens, no CFC do spray do cabelo do edifício, em voltar no tempo sessenta setenta anos de pequenas destruições. Mãe, não era isso que o padre na televisão dizia? Que o dedo do homem confundiu o dedo de deus e que deus não pode ter mais medida num planeta tão maltratado. Mas o menino era um gênio que era só um menino do edifício. Decidiu doar seis ou cinco camisetas, dois pares de tênis e não, mãe, nada mais não que agora eu só vou ganhar roupa no Natal. E atenção no edifício, por meio do aviso da síndica no elevador: prezados moradores, todos os seus restos, seu lixo, seus farrapos, os frangalhos dos seus corações em sangue, o que sobra da frieza dos seus corpos, seus pedaços de pano em decomposição e o que lhes for quase indigno de ter em casa deve ser entregue no apartamento mil, aos cuidados de dona Conceição, que recolherá tudo e ganhará o mérito, no posto de coleta no shopping perto do edifício, em favor das vítimas das enchentes, por todos os seus restos, seu lixo, seus farrapos, os frangalhos dos seus corações em sangue, o que sobra da frieza dos seus corpos, seus pedaços de pano em decomposição e o que lhes for quase indigno. No caminho do posto de coleta, o porta-malas do 4x4 estampado de farrapos, restos de coração em sangue e tantas coisas, dona Conceição enchia o peito de ar na avenida molhada.

Numa enorme sala, o corpo da defesa civil comemorava toda aquela monstruosa quantidade de doações e a bondade do seu povo e a caridade alheia e alguém vai colher os louros de todos os farrapos anônimos.

Margarida espera o dia inteiro pela hora de conseguir sair de casa, água no joelho, pensando no dedo de deus e no dedo do homem, a frieira ardendo, os espirros, a agonia silenciosa e acostumada de Margarida: eu queria uma toalha, um lençol que fosse novo, alguma comidinha... Não. Eu queria uma comidinha e um lençol novinho, que está bom. Não, não. Eu queria qualquer coisa. Qualquer coisa que vier me fará rezar até a morte pela alma boa que parou o que estava fazendo para que o lençol novinho viesse parar aqui. Os frangalhos ajuntados por Conceição foram derramados e separados todos para o mesmo lugar. O lençol novinho de Luciana e a toalha em farrapos do vizinho do sexto formavam um pacote com mais quatro coisas, e por duas léguas adiante se via o rastro de Margarida, fino, quase inexistente, de seus passos descrentes e curtos, da sombra do seu surrão pardo, do medo da chance que passou em crescer o feijão. O suspiro que diz, quase num grito, que ai meu deus, se tivesse parado de chover em abril e pronto. Mas é o dedo de deus. E por causa do lençol novo, da reza de Margarida, Luciana ganhou duas léguas de reza e uma cadeira no paraíso onde cabe quase todo mundo do edifício. Margarida se acostuma com a ordem que não é mais o sol e espera de novo a seca, a sopa de nada, o redemoinho de folhas, e abraça com força o lençol, manto da salvação de todas as almas do edifício. Conceição pensa que Deus, muito ocupado, com o dedo confuso, deve estar encomendando seu espírito para sempre amém a um trono de veludo azul, uma nuvem branca embaixo.

>> MARIANA MARQUES é publicitária e escritora. Lançou a coletânea Semana (2007), organizada por Natércia Pontes. Publicou o livro Transatlântico (2009).

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